"Asfódelo e a coragem de ser irrelevante"
Acordei as 02h20 da madrugada com essa frase na mente.
Em um mundo que nos cobra excelência, contemplar a insignificância é um ato de coragem. Foi o que eu aprendi com o senhor asfódelo, planta que deu nome ao plano astral no reino de Hades, reservado para aqueles que em vida não tiveram feitos nem gloriosos e nem condenáveis. Neutros em sua natureza, morreram e tiveram como destino os campos repletos de asfódelos alongados com belas flores esbranquiçadas, que na escuridão entre a neblina do reino de Hades, exibem um aspecto fantasmagórico. Penso que embora haja uma tendência do artista em ser reconhecido, existe uma parte confortável em contemplar a própria insignificância. Torna-se um exercício de equilíbrio pensar que embora nossos feitos, ainda somos irrelevantes e muitas das vezes temos a tendência a pensar que as pessoas se importam mais do que elas realmente se importam.
Penso que a necessidade de ser extraordinário e o medo da mediocridade nos adoece. Tem nos adoecido simplesmente contemplar a xícara de café quente quando dizem que deveríamos estar conquistando 6 dígitos em 15 dias. Gera angústia, ansiedade e depressão passar anos a fio sem mirabolantes sonhos a serem conquistados. Nos adoece a falta de perspectiva de felicidade ou a exigência dela? Dirão que é a falta de perspectiva. Ela é o problema quando desde sempre foi uma consequência. E não é que sonhar seja ruim, mas viver vendo sonhos como uma expectativa de felicidade a ser conquistada pode nos tirar o benefício de contemplar a insignificância cotidiana ao qual estamos imersos. Aquelas pequenas insignificâncias que não causam grandes impactos no mundo, mas que para nós são coisas genuinamente preciosas. Ser relevante sempre foi uma exigência básica para se viver nesse mundo, mas quanto mais vivo nele mais tenho a certeza de que essa exigência não faz o menor sentido. Isso não é uma garantia de plenitude ou vida bem vivida. Na verdade pode ser um estorvo. Sinto em Hades uma energia e poder impressionante para lidar com a irrelevância. Um deus que não faz questão alguma de ser querido ou bajulado. Séculos e séculos se passaram e ele segue sendo tratado de maneira irrelevante comparado a outras divindades; ali ele permanece com sua soberania intacta, seu reino inabalável, o destino de tudo. Ironicamente por vezes aparecendo adornado com asfódelos, os segurando em suas mãos. Um soberano portando um buquê simbólico "Eu não ligo". Sempre que vejo um asfódelo lembro-me de que essa coisa da relevância também é muito subjetiva. Pessoas passam a vida buscando conquista-la, enquanto vejo que aqueles que eu mais admiro nunca fizeram questão de ser e por isso são, aliás, gentilmente costumam dizer com sinceridade que embora a relevância as tenham feito conquistar muitas coisas, ela também carrega seu fel. Ser relevante pouco a pouco e sem querer nos faz entrar em moldes invisíveis. E não é um elmo foda que te faz derrotar o tempo. É um molde que supre as expectativas que o mundo e as pessoas tem projetado sobre você. Ser relevante é muitas das vezes um fardo onde as pessoas veem em você uma genialidade ou força heróica inabalável do qual nem você mesmo reconhece. São essas sensações distorcidas e escalafobéticas que me fazem ter uma certa fobia social e querer sumir. Nesses momentos fujo para os campos asfódelos, comungando com espíritos repletos de histórias absurdamente ordinárias para contar. São eles que carregam uma bagagem de gnoses e experiências profundamente emocionantes quando vivos, olhavam as estrelas ou tomavam uma xícara de chá se perdendo nas próprias sensações, observavam a chuva cair da janela. São eles que batiam a inchada no chão dia e noite, cultivando os cereais e alimentado a toda a Grécia. Hades foi generoso com os irrelevantes. É notório o respeito por espíritos que nunca se esforçaram para ser grandes coisas, pois estavam ocupados demais com a família, amores e pequenas tarefas do dia a dia. Com eles eu descobri que ser irrelevante não significa ser alheio a vida. Aliás, estavam tão imersos em detalhes simples que perdiam seu tempo de vida contemplando o que ninguém mais prestava atenção. O herói arrastava multidões e estremecia os corações. Estes estavam cheirando a terra, observando o rastejar da minhoca entre seus dedos, estavam ouvindo atentamente o canto das musas depois de um dia de trabalho exaustivo. Morreram com a plena certeza de que não se esforçaram para serem lembrados como heróis, mas viveram o suficiente para terem seu trabalho sutil e sua presença marcada na vida dos poucos amigos que os conheciam. Nada pode representa-los tão bem quanto o “irrelevante” asfódelo que adorna o trono do rei do submundo, pois ironicamente séculos se passaram e alguns destes espíritos até hoje nos encantam com seus versos camponeses. Honro e tenho profundo respeito por asfódelos, pois eles me recordam sempre de que relevância é uma questão de perspectiva, e que a irrelevância nem sempre é algo ruim. Pode ser uma excelente forma de encarar a vida e gerenciar o desconforto de viver em um mundo onde o requisito básico para continuar existindo é ser extraordinário.
Pinax de Perséfone e Hades no trono, do santuário sagrado de Perséfone em Locri. Hades carrega um feixe de asfódelos em suas mãos.
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Há alguns dias, sonhei que conversava com Hades e Perséfone. Enquanto a Rainha tinha uma energia expansiva e super falante, ele era mais centrado e reservado, e mesmo assim tinha "presença" na sala onde estávamos.
Irrelevante, sim, mas esquecível jamais
Leio aqui esse texto fazendo o meu lanche da tarde, que sensação mais prazerosa ler sobre irrelevancia e hades tendo meu momentos de total irrelevancia. Assim como antigos agricultores, admirando o seu simples presente, desejo viver cada irrelevancia da minha vida. Obrigada por esse incrível momento de prazer, Obsy🖤