Não sou santa, sou bruxa
Receber a chave para ser livre não nos impede de continuarmos aprisionadas
A penetração de dogmas e percepções cristãs na bruxaria acontece de maneira descarada e crescente, na medida em que o meio da magia e da espiritualidade sofre um tratamento de pureza, assumindo concepções cristalinas que, sem dúvida alguma, perpassam o viés de classe. Pois a pureza tem cor, status social e vestimentas próprias. Quanto mais padrão uma bruxa do digital for, mais aceitação e poder de controle social ela tem para usar ideais cristãos afim de atingir o maior número possível de contatos para seu novo lançamento mágico. Um toquezinho de magia xinfrim, um toque de puritanismo para a famigerada aceitação social. Está feita a nova turma de futuras bruxas do bem, que não conseguem fazer o básico sem antes pedir licença pra Jesus de Nazaré, que aparentemente nunca pediu licença pra levantar morto da cova e fazer rituais de necromancia.
Mas será mesmo que o cristianismo se introjeta na bruxaria? Até que ponto o puritanismo interfere na ideia do que seria a bruxaria nos tempos modernos?!
Vivemos hoje em um país que se coloca como Estado laico (imparcial religiosamente), porém a anos atrás eramos regidos por um presidente cujo slogan era "Deus acima de todos" e cuja premissa era governar para os "certos", e não governar para todos. Vivemos em um país em que, acima da cabeça do juiz, nos tribunais de julgamento, há uma escultura de Jesus crucificado na cruz (como é possível ver na série documental do julgamento das bruxas de Guaratuba - O Caso Evandro). Detalhes como esses confirmam que nosso país é extremamente cristão e que os valores religiosos influenciam fortemente a nossa realidade. Os elementos da religião dominante permanecem até hoje presentes nas mais diversas esferas onde a imparcialidade deveria imperar.
Logo, não podemos deixar de notar a forte influência que o cristianismo e seus valores têm na própria bruxaria, que está imersa praticamente como uma subcultura no Brasil. Podemos considerar valores cristãos na bruxaria como um machucado que merece urgência em ser tratado, uma vez que a construção de pureza disseminanda pelo cristianismo está totalmente associada ao machismo e cultura de aprisionamento de quem somos — e isso fere a ideia que tem sido feita a preço de vidas: a de uma bruxaria moderna pensada para emancipação e reconstrução de uma autonomia deformada exatamente por sistemas religiosos dominantes, como o cristianismo.
Mas o que fazer?!
Precisamos romper com a bruxa boazinha! Assumindo com confiança de que não somos santas, somos bruxas!
Parte muito grande das ideias puritanas que se introjetam na bruxaria surgem através da tentativa construir uma imagem da bruxa boazinha, que renega qualquer aspecto obscuro que atravesse a espiritualidade: morte, divindades obscuras, magias de vingança, validação da amoralidade como código da bruxa. O diabo da bruxa do bem é transformado em obsessores, magia NEGRA, mago NEGRO das trevas, entidades malignas diversas e ataques energéticos gerados por situações como acender vela PRETA dentro de casa, fazer magias em eclipses ou não reforçar a purificação na quaresma.
Na construção do estereótipo da "bruxa boazinha", a espiritualidade não comunga com o sexo — e, se comunga, é apenas com visões transcendentes ou binaristas, ligadas a ver o sexo com o outro como um caminho para harmonização do feminino e masculino, uma troca que conduz a elevação. Dançar pelada em volta do caldeirão, se masturbar loucamente enquanto espanta seus medos, oferecer êxtase e gozo para divindades ligadas a sexualidade obscura é uma profanação terrível, uma abertura para a sujidade.
Como herança cristã também permanece uma guerra entre luz e sombras, e a moral mágica passa a servir como uma desculpa para se sentir superior a outras bruxas e pessoas.
Essa é uma bruxa que provavelmente passa pela jornada de qualquer pessoa que hoje se defina como "bruxa", por mais que ela não tenha durado por muito tempo em nossas vidas, o que tenha surgido isoladamente em ocasiões específicas. Isso por conta de toda a nossa criação voltada a construir um ideal de humanidade totalmente ilusório, desenhando o masculino e o feminino, o ser homem e ser mulher com moldes de perfeição propagados e sustentados pelo cristianismo. E, para se alcançar esse estágio, devemos conceder muitos abusos, tentativas de modificação do nosso ser e aceitar o inaceitável — crenças que nos distanciam da nossa natureza selvática, que é fluida, desrrepressora e natural.
A bruxaria, independente da vertente, deveria ser um chamado para a quebra de paradigmas e um caminho de dentro, que envolve descer até o seu limbo psíquico, e não ascender até uma dimensão translúcida, numa tentativa de performar bondade, pureza e perfeição afim de conseguirmos passar na porta estreita da moralidade.
Penso que temos menos de 100 anos de vida nesta Terra — apenas isso para viver e apreciar essa jornada transformadora —gastaremos isso na busca pela perfeição e pureza? Uma pureza que nos blinda do processo de autonomia e nos cega para as percepções de raça, classe e gênero. Para a percepção de quem somos e de qual lugar ocupamos em nossa própria vida?
Se você faz uso de ideais de pureza e moralidade cristã para defender sua liberdade de fazer o que quiser na bruxaria, então você não está sendo livre para ser o que quiser, é paradoxal, uma vez que os próprios ideais não te permitem ser totalmente desprendida do dogma que a aprisiona. O valor da santidade cristã mantida pela bruxa como “respeito ao seu passado” vem acompanhado do medo introjetado por essa religião, medo que não permite o abandono total dos preceitos castrativos dessa religião.
Quem já fez parte do cristianismo e ousa adentrar na bruxaria sabe que a bruxa boazinha passa por nossas vidas em algum momento de transição, mas deixar com que ela crie raízes e se torne nossa maneira de viver a bruxaria é conflitar com a ideia de que a bruxaria é um caminho de imersão nas próprias sombras e percepções das feridas deixadas por esse sistema abusivo. Não ser santa e não se esforçar para ser uma após nossa iniciação na bruxaria é um processo de retomada da nossa autonomia, soberania e audácia diante do que tenta nos aprisionar.
Em algum momento, os medos puritanos, racistas, castrativos, devem ser transformados em liberdade; o diabo deve deixar de ser o perseguidor, a fogueira deve transmutar, e o martelo deve ser batido em busca de uma vivência mágica mais consciente sobre si e sobre tudo que nos rodeia.
Convicções como essas não são condutas impostas por bruxas do presente como “cagações de regra” são visões básicas e elementares de quem olha para o passado e analisa a história da bruxaria, notando a óbvia e sempre presente tentativa de converter quem ousou honrar a própria ambiguidade.
Com amor e heresia, Obsi
Precisa e mortal, como um delineado bem feito 🖤🌹
Eu concordo com tudo o que você disse. Mas, sempre que eu vejo questões semelhantes sendo abordadas em meios não-cristãos, eu fico com uma dúvida sobre o que significa essa santidade de que estamos falando. Seria esse conceito de procurar a luz e afastar as trevas, de ter um bem e um mal absolutos e não-intercambiáveis? Outra dúvida que fica: se a régua moral cristã é a santidade, se a régua moral da bruxa boa é a luz... qual é a régua moral da liberdade? (Não dá pra dizer que não existe uma régua da liberdade, porque sabemos criticar coisas que devem ser criticadas.)