Beba quentão do submundo antes que seja tarde demais
Sempre que o inverno se aproxima, o cheiro do quentão inebria meus pensamentos.
Desde a juventude sempre fui apaixonada por celebrações sazonais. Lembro que quando o frio começava a bater na porta eu imergia no mundo das tradições de festas juninas, buscando entender as origens e costumes que envolviam esse período de alegria e bebelança, do qual eu era proibida de participar, pois segundo as crenças da minha família evangélica, era festa de satã! Minha mãe que era mais aberta a celebrações do que a vó Maria, me deixava se encapetar vez ou outra nas brincadeiras juninas, me comprando a roupa caipira e todo o aparato:
-A menina não vai ser proibida de participar das atividades da escola!
Ela resmungava pra vó.
E dessa maneira eu soltava a franga na escola indo trajada de roceira, provar do quentão que mais parecia um xarope aguado de canela. Embora ele fosse bem ralo, alguma tia atrevida da merenda, tomada pelo tal diabo parecia batizar a bebida com uma dose de vinho (coisa que não era suficiente para subir os jovens cheios de hormônios) mas que dava para notar, dava! Nem podia! Era proibido levar bebida para a escola. Mas esse quentão mixuruco foi suficiente para aguçar a minha curiosidade arqueológica sobre a bebida. E assim eu me dediquei por um bom tempo a pesquisar sobre o quentão. Descobri que esse nome era caipira, e que a bebida era dos tempos coloniais, uma mistura que os portugueses fizeram numa tentativa de reproduzir a típica bebida europeia com base de vinho quente e canela, que eles tomavam para se aquecer no inverno. Tal bebida ficou popularizada em todo o Brasil, sendo mais comum o uso do vinho no preparo em regiões sul e sudeste, e a base de cachaça nas regiões norte e nordeste, onde era mais complicado encontrar vinho em abundância. O quentão carrega uma mescla de especiarias, às vezes frutas cítricas e como diz o nome: calor, um fogarel que sobe e aquece a alma das pessoas nas estações mais frias.
Guardei comigo o amor por essa bebida e ano após ano a cada chegada do inverno, buscava o bendito do quentão; e foi no paganismo vivendo a bruxaria ctônica que ele passou a carregar para mim uma simbólica mais profunda, quando em uma véspera de um solstício de inverno, eu me preparava para organizar a ceia para Hades e Perséfone…O inverno pra quem cultua o submundo helênico é época de calor e amor, época de dengo e de prazer. Um momento de abraçar e acolher as partes mais obscuras de quem somos, saber cuidar das nossas dores com jeitinho, afim de não machucar o que já está escangalhado por um bom tempo. As feridas cicatrizam na força do afeto, um casamento quente e obscuro acontecendo entre o senhor das sombras e a rainha dos mortos. Quando na superfície o frio chega, lá embaixo está pegando fogo. Alquimia perfeita. Perséfone já desceu e agora se derrama de intensidade, já fez a sua escolha e cedeu a tentação. Sentindo tudo isso na alma lá estava eu na cozinha. O vinho já estava no panelão, a colher de pau fazendo uma espiral e minha gnose acontecendo com o cheiro da fumaça subindo na cara. A fermentação oculta das uvas, uma caldeira borbulhante, e aí eu senti aquele arrepio vindo da ponta do pé até a consciência:
- Aquela que trás a morte vai chegar, e eu quero que tudo esteja perfeito pra ela, faça o quentão como eu lhe digo...
1 Garrafa de vinho tinto
1 xícara de açúcar
2 paus de canela (o fogo da transformação)
6 rodelas de gengibre (raiz cornigera da soberania)
Suco do sumo de 1 romã (a escolha de abraçar a mim que sou a sua sombra)
Pétalas de rosas vermelhas orgânicas ou colhidas (com amor, aidoneus)
Em uma panela, coloque o vinho, a água e o açúcar. Mexa para misturar e deixe em fogo médio por 6 minutos. Após esse tempo, adicione os dois paus de canela para ativar o fogo no inverno, as 6 rodelas de gengibre representando as raízes do Submundo, o suco de romã como a promessa de Hades para Persefóne, e por fim espalhe as rosas vermelhas expressando seu amor pelo casal ctônico. Mexa 6 vezes com uma colher de pau. Apos isso, deixe por 10 minutos no fogo. Depois desse tempo, desligue e deixe esfriar ( só um pouco) aprecie a bebida ainda quente.
Depois desse dia, sempre que a noite mais escura chega, eu penso nessa receita e vou logo pra cozinha preparar 🖤
Referências:
EQUINOX. Obsidiyana. Khthonia Dioktorus (Grimório I).
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Até salivei. Tentarei fazer essa receita a tempo do solstício
Nunca tomei, mas depois dessa descrição, pude sentir até o gosto 💜