3# O miasma é um assunto que persegue a bruxa ctônica
Saiba o que era, o que tem se tornado e os atravessamentos do miasma na prática da bruxaria ctônica.
Será que posso cultuar divindades ctônicas? E se eu ficar com miasma?
O miasma é um dos temas mais polêmicos dentro da esfera de culto aos deuses helênicos, sobretudo os ctônicos. Enquanto as recomendações sobre miasma são transmitidas com tranquilidade no que diz respeito à conexão com divindades olimpianas, quando se fala de divindades do submundo, a coisa fica um pouco mais embaixo, pois algumas crenças mais modernas do que de fato ancestrais são disseminadas como verdades genuinamente helênicas. O miasma “atual” tem adquirido uma característica separatista e preconceituosa em relação a divindades ligadas aos mortos, isolando-as e relegando-as a um lugar de assombro e sujeira, servindo como desculpa para distanciar as pessoas da consciência a respeito da morte; mas como será que os antigos gregos percebiam o miasma nessa direta ligação com os ctônicos? Será que realmente havia algum tipo de castigo ou perigo severo para aqueles que se colocavam em estado de conexão com Hades, Perséfone, Hekate, ou qualquer outra divindade ligada ao submundo? E afinal de contas, o que é o tal miasma?
Essas são algumas das perguntas que assombram os adeptos da bruxaria ctônica que realmente desejam adentrar com responsabilidade espiritual e ancestral nesse universo obscuro. Para responder essas perguntas precisamos entender que atualmente o que se conhece popularmente como miasma dentro da espiritualidade, é uma mescla de crenças e preceitos oriundos do helenismo, espiritismo e do cristianismo. Muitas pessoas adeptas de crenças helênicas reafirmam não estarem falando de pecado quando falam de miasma, mas em poucas palavras é possível notar suas mentes contaminadas com um puritanismo excludente e catequisado. Aproximam-se mais dos cristãos do que do helenismo. Por isso, para adentrarmos nesse assunto precisamos entender que algumas crenças acerca do miasma (que também trataremos aqui) se atravessam e “contaminam” práticas ditas como oriundas originalmente da Grécia. Ao longo desse artigo você irá se deparar com algumas palavras que perderam seu sentido original por influencia do cristianismo e isso poderá afetar seu pensamento sobre o que estarei a dizer, portanto tente focar na origem do que eu estou dizendo e entender que para mudarmos essa influencia é preciso entender de onde estes conceitos vieram para chegar até nós da maneira como chegam. E eles vieram do paganismo, por isso faça esse caminho da raiz comigo, sabendo que antes de terem sido popularizados pelo cristianismo, a ideia de limpeza, pureza, castigo era abordada em uma outra perspectiva.
O miasma para os antigos gregos
A palavra miasma é de origem grega, derivada de miarós (mancha/sujeira), sendo assim o conceito de “miasma” surgiu na Grécia antiga, o que não significa que somente os helênicos possuíam crenças acerca da sujidade e pureza. Em diversos materiais etnográficos de outras culturas é possível notar a presença de crenças e tratativas ligadas a poluição emanada da mortalidade. Na Grécia antiga o miasma era a poluição que comprometia a integridade de alguém, sendo uma mancha não necessariamente física que culminava na contaminação de toda a comunidade por ações corruptivas. Logo, o miasma possuía uma característica viral. Isso significa que as ações isoladas de um indivíduo poderiam afetar todo seu entorno como algum tipo de praga que começou com uma pequena resposta a infâmia de alguém. O miasma em si não é a causa da praga, mas o resultado gerado por comportamentos e exposição a agentes e situações que provocam essa mancha na conduta e alma do indivíduo.
Se tentássemos incluir todos os comportamentos “repugnantes”, a poluição tornar-se-ia uma categoria alarmante e talvez de abrangência vazia, uma vez que não parece que, em termos gregos, a repulsa se apegue apenas a um conjunto restrito de desvios; qualquer ato ultrajante torna seu perpetrador, visto sob uma certa luz, miarós. - Robert Parker (1996)
O miasma na perspectiva helênica trata-se então de uma contaminação que os mortais causam entre si, uns com os outros, uma vez que é impossível que todos os seres humanos de uma sociedade estejam imunes de cometer qualquer desrespeito que culmine no miasma. E se a mancha de um contamina os demais, então estamos fadados enquanto sociedade a um estado de impureza. Logo, podemos entender o miasma em uma percepção helênica como uma “poluição” inevitável emanada pela própria convivência e mortalidade.
“Pessoas inocentes poderiam ser afetadas pelo miasma, pessoas que não eram responsáveis por um crime nem culpadas de qualquer associação criminosa ou moral...” - Maureen Eckert
A partir disso podemos perceber que para os antigos gregos, infringir crenças religiosas, normas políticas e sociais representava entrar em estado de miarós, o que fez com que a ideia de poluição e contaminação de conduta se tornasse uma ferramenta de organização social a partir da cautela ou medo, já que estar em miarós poderia comprometer não só o contaminado mas todas as pessoas que estavam a sua volta. E a partir dessa ideia de contaminação pessoal a purificação tornou-se um sistema social que representava a eliminação do miasma, para que os indivíduos pudessem estar na presença das divindades. O miasma estava diretamente relacionado à purificação que era necessária ser feita antes da entrada em santuários; ele representava o estado de sujeira antes das devidas práticas com os deuses; Por isso, simples ações cotidianas, como não tomar banho ou estar com as mãos sujas antes de entrar em um templo, eram consideradas miasma. O miasma poderia ser gerado a partir de duas principais fontes:
Causas naturais
Eventos desestabilizadores do curso e vida cotidiana, que expõem as pessoas ao incerto que paira entre a vida e a morte. Essa é uma das razões do porque o parto e morte eram considerados eventos miasmáticos. São situações que desafiam a normalidade do dia-a-dia trazendo consigo o luto, tensões, medo, desespero, dor e emoções incomuns. Nesses eventos o miasma representava mais estar ferido/poluído com o sentimento do luto ou do ocorrido, do que de fato adquirir doenças. Para eles não eram necessariamente os fluidos do parto, menstruação, morte que geravam o miasma, mas a própria situação que desestabilizava o curso das suas vidas.
Causas não naturais
Essa categoria abarca assassinatos de todas as formas, crimes hediondos que feriam a integridade de alguém. Muitas situações ligadas à produção de miasma não natural foram documentadas em tragédias, algumas das mais populares Édipo Rei, de Sáfocles e Oréstia, de Ésquilo. Não faltam exemplos na mitologia de assassinatos que acabaram comprometendo povos e famílias inteiras pela vil ação de um único individuo. Um debate nos trás um exemplo de como o miasma ainda hoje deve ser um assunto aberto a conversas que transpõem a moral estabelecida pelos próprios gregos antigos. Em um dos primeiros diálogos de Platão, “Eutifrôn” ele nos apresenta a situação de um espertalhão religioso que dialogando com Sócrates afirma ter denunciado seu próprio pai por compactuar com a morte de um escravizado. Segundo ele, em um acesso de raiva a diarista da família cortou a garganta de um escravo e o pai dele amarrou as pernas e mãos do mesmo o jogando em uma vala (ainda vivo). Eutifrôn é questionado por Socrátes, sobretudo por denunciar o próprio pai, o que era considerado um ato completamente derespeitoso e vergonhoso. As crianças eram incentivadas desde muito cedo a jamais denunciar o pai e a família crescia sabendo que o pai não deveria ser entregue a justiça pela própria família por seus crimes, pois isso representava a desonra e ruína da família. Eutifrôn, para defender seus argumentos se vale da ideia de miasma, dizendo:
É muito engraçado, Sócrates, que você, entre todas as pessoas, pense que faz diferença se a vítima é um estranho ou parente, e não tenha em mente uma coisa, se o assassino agiu com justiça. Se ele agiu com justiça, deixe-o ir, mas se não, deve-se processá-lo, especialmente se ele compartilhar o seu lar e comer na mesma mesa que você. A poluição é a mesma se, estando consciente do que é certo, você faz companhia a tal homem e não purifica a si mesmo e a ele da poluição, levando-o à justiça. (4e)
Sócrates questiona a veracidade das palavras do denunciador, é possível notar que para ele choca a impetuosidade de Eutífron em denunciar o próprio pai:
Com Zeus como testemunha, Eutífron, você acredita que entende o que a religião defende e o que é piedoso e ímpio com tanta precisão que, na medida em que essas coisas que você diz aconteceram, você não tem medo de possivelmente fazer algo ímpio ao trazer seu pai para julgamento? (4e)
Eurifron se justifica nesse diálogo a partir do miasma que ele e a família pode adquirir com as atitudes do pai, visto que ele era o responsável pela vida do escravizado. Esta é apenas uma das situações onde podemos perceber o quanto para os gregos o miasma não os isentava de acobertarem atos extremamente violentos e desrespeitosos à vida, valendo-se de outros códigos que regulavam sua conduta patriarcal. Sendo assim, o miasma ainda hoje exige de nós reflexão e autoanalise, para perceber o que é ou não cabível dentro da ideia de sujidade. O que quero dizer com isso é que não podemos simplesmente transferir códigos morais do período arcaico e clássico da Grécia antiga, sem questionar como esses códigos se adaptam a nossa realidade hoje. Pois sem dúvida muitos de nós consideraríamos hoje que não só ter um escravo, como joga-lo vivo em uma vala quando ele precisaria de socorro, seria motivo mais do que suficiente para contaminação e miasma. Infelizmente muitas pessoas tem o fetiche de alterar e radicalizar códigos do passado helênico, afirmando que tais códigos são clássicos e antigos, quando tanto nesse quanto em vários outros diálogos filosóficos vemos que os helênicos já naquela época questionavam a ordem e lei, dialogavam sobre estes códigos e mostravam que assim como hoje, a sociedade é cheia de camadas e conflitos que podem ser percebidos de diferentes ângulos por diferentes pessoas.
Sendo assim, qualquer código e conduta social independente da época, precisa passar por uma revisão a partir da nossa realidade, até mesmo para que estes códigos antigos não terminem por quebrar regras de ordem social do nosso próprio mundo moderno. No caso do miasma na Grécia antiga temos um código que mescla duas questões principais:
Esfera criminal:
A contaminação e questão do miasma era levantada para defesa e exposição de problemas sociais que aconteciam entre os indivíduos.
Esfera espiritual:
Quase sempre o miasma está associado à proibição da entrada em templos, dificuldades na comunicação divina ou o receio de pedir favores do deuses.
Este segundo com maior notoriedade, já que a maioria escritos que narram a sujidade e contaminação da alma, estão diretamente ligados a relação dos indivíduos com os deuses. Na esfera espiritual, podemos ver exemplos de recomendações para os indivíduos, mas por se tratar de uma representação simbólica e não necessariamente literal da contaminação, o miasma desde sempre exigiu autoanálise e reflexão. A disseminação da cultura de limpeza e purificação foi uma forma de gerar uma consciência coletiva e natural entre os gregos, sobre como e com o que eles precisariam se preocupar antes de pisar em um templo e estar diante dos deuses em cerimônias.
É dessa maneira que ainda hoje precisamos pensar o miasma a partir da autorreflexão e processo de autoconhecimento. Podemos reproduzir purificações dos helênicos afim de criar uma conexão ancestral com suas práticas, mas isso não substitui e nem evita a mairós das nossas próprias atitudes. E nossas atitudes são atuais e tangíveis, portanto podemos ver o miasma como um código pessoal de autoanálise de comportamentos autodestrutivos que contaminam a nossa própria existência e se reproduzem no cotidiano, contaminando também todos a nossa volta. Sabendo da característica viral com que os gregos percebiam o miasma, podemos traçar um paralelo realmente interessante com comportamentos tóxicos que temos, atitudes inconsequentes que transgridem nossos próprios limites e o do outro. O miasma pode ser percebido como pulsões violentos, desagradáveis e pouco trabalhados da nossa psique, que irrompem do nosso inconsciente prejudicando a nossa convivência com os outros e com a nossa própria natureza. Em nossas jornadas como bruxas ctônicas, ele pode servir como um sinalizador de que nossa alma tem sido corrompida com uma toxidade que acabará nos afastando das divindades. Não dá pra levarmos algo tão sério para os gregos antigos, apenas como uma listinha do que fazer ou não fazer. Eles não tinham uma cartilha específica sobre miasma, do contrário, disseminavam e incentivavam a purificação, a consciência e importância da autorreflexão, gerando debates filosóficos que culminavam em um estado de consciência espiritual diante dos deuses e deusas. Dessa forma, pensar nos ajuda a compreender, identificar e conter o miasma. Por isso, podemos fazer algumas perguntas astutas para que nós mesmos possamos ter consciência do que contamina a nossa conduta como seres humanos:
Quais são as atitudes mais tóxicas que eu costumo ter comigo mesmo?
Quais tipos de comportamentos tem prejudicado a minha relação com as pessoas e com o meu entorno? Eu tenho algum vício ou compulsão que me deixa triste, angustiade, que me faz acabar descontando nas pessoas ou em mim?
Eu consigo identificar grandes miarós (manchas) que a sociedade tem reproduzido? Quais são esses comportamentos coletivos que destroem a vida das pessoas? Como posso evitar agir assim com os outros? (Problemas sociais coletivos podem ser identificados como grandes manchas de uma comunidade).
Sentimentos como raiva, rancor, inveja, ciúme e tantas outros fazem parte da nossa dinâmica relacional e existência como seres humanos; para nós mortais, eles são miasmáticos e não temos como acabar totalmente com isso sem se render a falsa ilusão da perfeição, é por isso que o miasma não é uma força do qual nós seres humanos somos capazes de dissipar totalmente. É parte daquilo que somos, são resquícios da mortalidade em coletivo. As vezes você não tem nutrido isso, mas é invadido de repente sem aviso por forças miasmáticas. Nossa responsabilidade espiritual como devotes é equilibrar, inibir, evitar o próximo passo, o que acaba culminando na contaminação total da nossa existência e gerando Agos.
Themis, Agos e Nemesis
As divindades helênicas eram grandes norteadoras da conduta e comportamento social dos gregos. Embora não fosse incentivado que tentassem ser e agir como os deuses e deusas, eles representavam tudo o que de alguma maneira organizava e dava estrutura ao mundo deles. Desde os tempos antigos suas reações para com os mortais foram canalizadas por poetas, tendo essas canalizações sofrido influencias das próprias demandas sociais e políticas daquele tempo. Hoje, aqueles que decidem trilhar o caminho do paganismo em honra aos deuses gregos esbarram em suas leis ainda em funcionamento; os deuses e deusas estão vivos e a estrutura que constitui seu universo e ordem divina também. Sendo assim, por mais que estes tenham sido popularizados de maneiras muitos descontraídas, eles enquanto família espiritual possuem seus códigos, ou seja, preceitos que dão ordem e mantem o funcionamento da dinâmica relacional entre humanos e divindades. Esta é a lei divina representada na essência da deusa Themis. Filha de Gaia (Terra) e do Céu. Ou seja, a própria terra dá a luz a sua força de estabilidade organizacional. Uma força mediadora da relação entre divindades e os mortais.
Após desposou Têmis luzente que gerou as Horas, Eqüidade, Justiça e a Paz viçosa, que cuidam dos campos dos perecíveis mortais - Teogonia de Hesíodo – Os deuses olímpios.
Sendo assim a lei divina e organizacional do planeta terra (Themis) da origem a princípios da ordem no caos do nosso mundo. Esse fator importa pois crendo nós que os nossos deuses são vivos, Themis continua sua tarefa, e sendo assim a ordem divina dos deuses resiste ao tempo e com ele se movimenta para superar a morte do paganismo helênico. Isso nos faz pensar que as leis divinas não pararam no tempo, mas o acompanha ao longo de gerações, seguindo na onda do caos e ordem dos nossos tempos atuais, para que assim as divindades possam continuar a se fazerem presentes em nossa realidade. Uma lei que não muda ao longo do tempo é uma lei morta, e se as divindades gregas são como sempre foram, amaranhadas na mortalidade humana, então devemos nós transpor a limitada concepção de que estes são deuses de pedra imutáveis, para nos abrir para o assombroso espetáculo que é perceber que os deuses ainda jogam com a vida humana. Sua ordem em meio ao caos está aqui e sempre estará enquanto houver gaia (terra).
Quando nós enquanto pagãos corrompemos Themis (ordem natural), estamos suscetíveis a agos, a ira divina. Isso significa a violação de princípios que podem causar-nos desgraça ou antes de tudo desrespeitar a nós mesmos, afetando também as pessoas ao nosso entorno. Enquanto agos surge de transgressões que poderiam ou podem ser evitadas, o miasma emana naturalmente a partir das diversas situações ao qual somos condicionados por existir.
“Um cadáver, por exemplo, difunde miasma, mas o Agos só é criado se um sobrevivente lhe negar o direito divinamente sancionado ao sepultamento. Para criar agos, a ofensa deve provavelmente ser dirigida contra os deuses ou suas regras” - Robert Parker (1996)
Entre a Agos e Themis há uma força que orbita fúnebre e travessa regulando nossas ações e trazendo consequências que podem culminar na morte do nosso espirito. Nemesis é como a mão que chega de repente puxando o fio das moiras, gerando o escorregão, a fatalidade e consequência a partir dos nossos desequilíbrios. Ninguém sabe de onde ela vem e onde ela vai puxar, para a sorte ou para o azar. Ela é uma força de equilíbrio que estabelece uma resposta afim de manter o reinado de Themis (ordem divina) de pé. Nemesis não se resume a bondade ou maldade, ela é o ponto de equilíbrio entre ordem e a resposta raivosa dos deuses contra nossas bestialidades autodestrutivas. Mas onde entra o miasma no meio disso tudo?
“O miasma, para os deuses parece irrelevante; é uma sujeira perigosa que as pessoas passam umas para as outras como uma mancha física. Agos, por outro lado, tem sua origem em um sacrilégio-aja, e o enages, como sugere o genitivo anexo, está nas garras de um poder vingativo; a razão para evitá-lo não é a lágrima da contaminação, mas escapar de ser engolido pelo castigo divino que o espera”. - Robert Parker (1996)
Isso significa que estamos fadados à contaminação e a contaminar enquanto seres humanos, mas o que realmente mata o nosso espírito e provoca a irá dos deuses é fugir, dissimular ou tentar enganar o resultado das nossas próprias atitudes. Evitar sofrer as consequências a partir das nossas ações. Fugir do fato de encarar nossa própria toxidade e tentar maquiar isso projetando nossas angustias e dores nos outros. Isso seria como desrespeitar as movimentações que Nemesis provoca na teia das nossas vidas a partir das nossas escolhas e comportamentos. Isso seria dissimular uma falsa realidade onde somos perfeitos e assim, ignorar a nossa tendência a sujidade e portanto ignorar as investidas que os deuses e deusas colocam no nosso caminho para que possamos nos desenvolver como seres humanos. É ignorar a ordem divina helênica “Tudo emana do caos” e corromper a naturalidade de Themis “Ordem em meio ao caos”.
Mas e as divindades ctônicas?
Não existem documentos antigos que comprovem algum tipo de contaminação exclusiva por miasma ao adentrar em templos de Perséfone, Hades, Hekate ou outras divindades ctônicas. A purificação era exigida ao adentrar no santuário de qualquer divindade e os ctônicos não foram impedidos de serem reverenciados por qualquer ideia de contaminação por miasma, já que todos se tratam de energias divinas e o miasma, como vimos, emana da nossa inter-relação uns com os outros enquanto mortais. Os sacerdotes e sacerdotisas ligados a ritos fúnebres tinham a consciência das devidas limpezas antes e depois dos seus rituais e a purificação servia como norma para acessar o divino em todas as esferas, esse era um dos motivos do porque muitos santuários e templos eram construídos próximos de nascentes e rios. Em uma das mais importantes passagens necromantes da mitologia grega, podemos vislumbrar Ulisses realizando um complexo rito de necromancia afim de contatar o espírito do adivinho Tirésias. Ulisses segue as recomendações de Circe e parte para o bosque de Perséfone, onde sacrifica animais em uma cova e tem assim o privilégio de contatar os mortos. Fato curioso é que logo após seu ritual de necromancia suas palavras são:
Sem tardar, voltei para a nau e ordenei aos companheiros que embarcassem e soltassem as amarras. Ato contínuo, eles saltaram para bordo e tomaram lugar nos bancos dos remadores. A corrente nos levava pelo rio Oceano, e a nau se afastou, primeiro com ajuda dos remos, e depois ao sabor da brisa favorável. - Odisseia (Canto Xl)
Ulisses evoca o fantasma do adivinho Tirésias em um ritual de necromancia.
Não há em seguida qualquer punição ou fúria divina por miasma, ou ideia de que Ulisses ao contatar os mortos tornou-se inapto para o convívio. Esta é apenas uma das tantas cenas ligadas a necromancia que reforçam a ideia de que não haviam purificações diferentes do que aquelas que deveriam ser feitas cotidianamente, tanto que muitas dessas ações não são mostradas nas passagens mitológicas. Entende-se "limpar o miasma" como uma conduta rotineira e completamente natural. Uma das principais justificativas que adeptos do culto a divindades helênicas usam para amedrontar as pessoas, é de que as divindades do submundo produzem miasma na vida daqueles que as cultuam, e com isso trazem a morte e doenças para dentro das nossas casas. Não há justificativa plausível e comprobatória para isso senão o medo da morte. Algo comum e natural da existência humana, exceto quando esse temor extrapola a linha do raciocínio lógico e nos impede de reverenciar divindades ligadas ao submundo, porém não nos impede de comer uma carne há muito tempo morta e conservada em nossa geladeira. As aminas putrescina e cadaverina continuam presentes na carne, também em nossa vida e até mesmo em nosso corpo. Ignorar a presença da morte e considera-la como um fator que podemos escolher ter contato ou não é uma forma de se manter em constante poluição. Ignorante e alheio, pensando que realmente se tem o poder de separar a vida da morte. Não há como. Fingir pra si mesmo que isso é possível é manter-se contaminado com ignorância e falta de noção sobre a própria existência. Alegações de que cultuar as divindades do submundo atrai miasma parte de um discurso mais moderno do que ancestral, e acredito que agora que adentramos um pouco no miasma a moda grega, podemos conhecer mais sobre as influências que esse conceito sofreu ao longo do tempo, e como isso altera ou incopora novas crenças sobre miasma entre adeptos do culto a divindades helênicas.
A teoria miasmática
É muito comum ouvir em filmes que revivem o século XlX a frase “recomendo um bom ar” em caso de qualquer doença. Naquela época muitas pessoas se deslocavam de suas residências urbanizadas para ficarem em zonas afastadas da cidade, afim de respirarem um ar fresco. A teoria miasmática foi a principal motivadora desse tratamento médico. Em 1349, o médico hispano-árabe Ibn Khatimah, publicou um tratado onde afirmava que a causa direta de toda doença era o ar que as pessoas inalavam. Essa ideia foi radicalizada por ele, já que o médico grego Hipócrates (460-377 AEC) já havia afirmado que o ar era um dos principais agentes causadores de doenças. Ponto importante é que Hipócrates descartou qualquer hipótese de doenças causadas pelo ar a partir de eventos espirituais, portanto não entendia que o ar contaminado provinha de um miarós emanado por condutas religiosas inadequadas das pessoas. No século XIX temos o conceito de miasma intimamente ligado doenças contagiosas, a ideia que se espalhou de forma muito mais intensa após a peste bubônica, era de que vapores e cheiros pútridos emanados de corpos em decomposição, mofo, excremento de valas e vísceras adoeciam as pessoas. Não que isso não fosse possível, porém esse era o tipo de diagnóstico para qualquer doença. É nessa época de manifestação de diversas doenças causadas por uma urbanização caótica e desordenada, que a morte e aspectos ligados ao mundo dos mortos passaram a serem diretamente associados à doença e ao miasma. Embora na Grécia antiga entendia-se que tocar um cadáver e adentrar a casa dos parentes era um fator que gerava miasma, as descrições e levantamentos médicos do século XlX demonstram um cenário bem diferente e desesperador, o que resultou inclusive em reformas sanitárias. Nesta época a morte exalava em toda a cidade, muitos cadáveres eram enterrados em covas rasas e o líquido dos seus corpos acabava indo parar em esgotos a céu aberto. Enquanto os gregos incentivavam enterros para além dos muros da cidade, em tempos vitorianos a morte abocanhava a vida e tomava quase toda a realidade com miséria, doenças, pestilenças em uma linha indivisível entre a cidade e o cemitério, muitos deles inclusive eram praças centrais e locais fétidos de encontros públicos. Seria quase impossível não associar as doenças a própria morte. Ainda no século XIX a teoria miasmática se enfraqueceu e foi deixada de lado para dar espaço a teoria dos germes.
Embora no século XIX a teoria miasmática tenha tido sua notoriedade, a ideia do ar contaminado por miasma estava presente na medicina desde muito antes. Figura popular da era medieval era o "doutor da praga" médico geralmente estagiário que utilizava uma máscara com bico acentuado, afim de manter seu nariz distante dos pacientes e proteger-se do ar contaminado.
O miasma no espiritismo
O espiritismo possui grande influencia em fenômenos sobrenaturais do século XlX, uma época muito fértil para o ocultismo, nesse período as sessões espíritas foram popularizadas por um grande interesse dos vivos em contatar os mortos. Foi dessa maneira que somando teorias sanitaristas com o puritanismo cristão, formulou-se o conceito de miasma dentro do espiritismo, onde podemos ver uma apropriação de um conceito originalmente helênico. A palavra aqui adquire um caráter de deturpação, já que ela é abordada com características religiosas, no entanto possuindo em seu significado uma série de crenças cristãs. Dessa forma, o espiritismo vê miasma como uma emanação de “energia negativa” sendo orientada a partir de pensamentos bons e maus, coisa que se difere e alcança nuances muito semelhantes ao puritanismo pregado pelo cristianismo. O "miasma deletério" como é comumente chamado, é a energia ruim ou poluída altamente destrutiva, capaz de causar enorme dano na saúde não só espiritual como também física. Ele é um fator desmoralizante e corruptível a alma. Alguns textos podem sugerir uma percepção de miasma muito semelhante a como os gregos viam, no entanto essa é a característica fundamental da apropriação cristã: perverter a origem das coisas e sua aplicação, porém dando uma característica semelhante ao que foi um dia. É por isso que precisamos nos atentar se não estamos transformando a cautela em um tipo de terror e medo do pecado, medo da punição de Deus ou medo de estar sendo corrompido pelo diabo.
Se conscientizar da uma apropriação do termo helênico nos faz redobrar a nossa atenção sobre o tema “miasma”, e com isso retomar a percepção sobre miarós de uma forma mais saudável e condizente com a ordem dos deuses ao qual cultuamos. É a partir disso que podemos pensar em ações que buscam nos colocar em estado de Katharmos (pureza), o que nada se compara com puritanismo.
Orestes sendo purificado com sangue de um leitão. Atribuído ao pintor Eumênides 380 - 370 a.C.
Katharmos e ideia de purificação para a bruxa ctônica
Na Grécia antiga, a purificação não era simplesmente uma limpeza, mas uma forma de desobstrução da consciência afim de contatar as divindades. Através da purificação era possível transformar aquilo que não era visto em tangível e visível. Era possível acessar o divino. Dentro do contexto helênico é como se entre nós e os deuses houvesse algo que embaça nossas mentes e se não limpo, acaba obscurecendo totalmente nossa visão oculta. Limpar era uma forma de tornar o metafísico algo totalmente palpável (Parker 1996). Portanto se purificar é sobre conseguir vislumbrar e acessar o divino. Sem a purificação não havia acesso as divindades. Embora as divindades ctônicas não emanem miasma, elas geralmente nos conduzem a envolvimentos diretos com o mundo dos mortos, e por isso a purificação se faz importante para que possamos manter a conexão com eles de forma saudável. Hoje, como bruxas que se conectam com o submundo, podemos realizar purificações se inspirando em modelos antigos de práticas que eram realizadas pelo povo helênico, a partir de legislações fúnebres propostas por Sólon e outras regulamentações difundidas entre as polis da Grécia.
Atos que podem ser realizados após rituais com divindades do submundo
Aspergir a casa com água do mar (pode ser da chuva).
Fazer oferendas diante do fogo aceso ou o do caldeirão.
Limpar o ambiente do ritual antes do amanhecer com água consagrada.
Fazer fumigação de ervas no ambiente.
Levar dejetos para fora e enterra-los em uma cova.
Sempre tomar banho após os rituais.
Um dos gestos mágicos de purificação mais importantes atualmente é fazer terapia. A terapia é fundamental para quem realiza um trabalho de conexão com as divindades do submundo, uma vez que para nós bruxas ctônicas, ela serve como um purificador de questões conscienciais, nos permitindo organizar, entender e perceber as coisas que acontecem dentro e fora de nós com mais clareza. Alguns praticantes do culto a divindades helênicas podem propor que é necessário estar em estado de total alegria ao contatar as divindades pois isso representa pureza, no entanto isso não faz o menor sentido para o culto a divindades ctônicas e não deve ser entendido como um tipo de lei seguida em toda a Grécia antiga. Nos registros mitológicos, sobretudo ligados a divindades do submundo, vemos que muitos devotos buscavam-nas em situações de luto, desespero, angústia, e não somente em momentos de alegria. Celebrar com as divindades é genuinamente sagrado, mas considerar felicidade como um requisito para comungar com eles é violento.
Bruxaria gera miasma?
A palavra bruxaria não foi mencionada pelos gregos enquanto uma prática que produz miasma, inclusive até hoje existem muitas dúvidas sobre a origem dessa palavra; o que se sabe é que o período de maior menção foi no século XVl em documentos inquisitoriais. Insinuar que a bruxaria causa miasma e que isso tem alguma ligação com a Grécia antiga trata-se de preconceito religioso. Para nós, bruxas ctônicas, a bruxaria pode e deve ser um caminho de híbrido que comporta nossas práticas permeadas entre a vida e a morte. A bruxaria ctônica pode sobretudo trazer nosso espírito de volta a vida, isso se nos abrirmos para o movimento de transformação que ela nos possibilita, mas creio que esse é tema para um outro artigo.
Deixo aqui um conselho final: se você não faz parte de uma religião e não segue dogmas pré-estabelecidos, não deixe com que os outros imbuam na sua realidade espiritual, regras que eles tem para si mesmos sobre o que os tornam infames. Sendo assim, nossa mancha mortal não é algo estático, é mutável e precisa ser sempre gerenciada a partir de um exame da nossa própria consciência sobre nossa conduta com nós mesmos e com o mundo que nos rodeia. O miasma do passado não é o mesmo do presente, a vida muda e se transforma, e se não quisermos provocar o agos, precisamos parar de bestificar os deuses e achar que eles continuam parados no tempo, pois é justamente a capacidade de cocriação infinita que os mantem cada vez mais vivos e incorporados a nossa realidade; os deuses se atualizam, nós também devemos, e podemos ainda assim continuar honrando a ancestralidade helênica. Sendo assim, o miasma transpõe e muito a esfera física e nos tempos caóticos de hoje, precisa começar a ser cada vez mais percebido como uma força de contaminação simbólica, espiritual e psíquica; uma força que exige análise intimista e pessoal de cada um, para muito além de apontar o dedo sobre a prática do outro e julgar o que é contaminante ou não.
Referências:
PARKER, Robert. Miasma: Pollution and Purification in Early GreekReligion
ECKERT, Maureen. Euthyphro and the Logic of Miasma
KANNADAN. Ajesh. History of the Miasma Theory of Disease
KIOSI. Evaggelia . Τhe Ancient Greek Ἄγος (Agos) and the Warrior Ethos
Glossary Of Miasma and Purification in ancient greek religion - Hellenic Gods
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Obrigada, Obsý! 🖤
Perdi minha mãe e minha irmã quando eu era criança ainda e por isso cresci aprendendo muito com a morte e com os mortos. Sempre foi muito dolorido pra mim ver e sentir como a cultura comum é ter asco da morte.
Não é fácil, mas no meu caminho eu acabei escolhendo descer pelas fendas da terra em vez de me perder em mim mesma.
Te ler tem me ajudado a me legitimar!
Texto maravilhoso e esclarecedor! Como sempre, você é muito necessária, Obsidiyana!
Quando iniciei minhas práticas na bruxaria, não pude evitar de me tornar uma bruxa ctônica e como uma pequena sementinha que eu ainda era, ouvi muitas coisas infundadas sobre miasma, quase como se estivesse conversando com um "cristão" e não uma bruxa.
E ainda hoje vejo tamanha desinformação dentro daqueles inseridos no Helenismo, afirmando que — Ter contato com divindades ctônicas irá trás miasma para a sua casa e a sua vida.
Quase — ou totalmente, culpando as divindades ligadas ao submundo.
Eu apreciei muito o seu texto! Uma informação muito necessária e eu agradeço-a profundamente por nos passar este conhecimento!